Sexta-feira, 8/10/93
Jornal de Brasília
Um século de mesmice
BIA BOTANA
Não dá para.acreditar, às portas do século XXI o nosso cenário políco permanece estagnado, deveras conservador tal como o era no princípio do tempo republicano; de lá para cá, os fatos parecem se repetir numa mesmice entediante.
Nos primeiros dias do século XX, a Carta Magaa republicana completava sua primeira década de existência. Inspirada no liberalismo constitucional norte-americano, pernanecia sob a guarda cuidadosa de seu idealizador-mor, re€dator e revisor, Rui Barbosa (1849-1923). Com a morte de seu fiel defensor, passou-se a cogitar de sua reforma, que foi promovida pelo presidente Artur Bernardes (1875-1955), que governou sob constante estado de sítio, para reforçar a autoridade da União e do poder executivo, em 1926.
As transformações mundiais após a Primeira Grande Guerra explica a belicosidade da década de 20. O pensamento europeu do comunismo encontrou no ideário da nossa elite intelectual franca aceitação, enquanto o anarquismo abrigava-se entre os estrangeiros naturalizados - ambos rastilharam incendlários a sublevação das massas contra a oligarquia do café-com-leite. A enganosa rcvolução de 30 revelar-se-ia um golpe mantenedor do "status quo", garantindo a sua situação de poder enquanto suprimiu impunemente, após 40 anos de vigência, a Constituição de l89l.
A Carta promulgada em 1934, pouco respeitada, não resistiu aos persistentes movimentos políticos, e, em 1937, um golpe final na democracia foi dado com a sua supressão. Uma nova constituição então foi redigida pelo jurista Francisco Campos (1891-l968) para ser outorgada por Getúlio Vargas. Autoritária e centralista, a Consütuição de 1937 serviu à ditadura e expropriou os direitos democráticos adquiridos com a República.
A Carta de l946 restabeleceu a democracia, mas manteve as características conservadoras visando à continuidade da linha de governo. Com o fim da era Vargas, em 1954, o país foi lançado numa nova aventura política, semalhante à que surgiu com a morte de Rui Barbosa. Mais uma vez, a classe dominante tradicional, agora não mais representada pelos barões do café mas por seus herdeiros, os jovens ambiciosos empresários, desfere novo golpe contra a Constituição e sufoca a ação revolucionária comunista, onde o antigo líder tenentista de 1923, Luiz Carlos Prestes (1898-1990), era seu maior expoente. O golpe militar de 1964 deu continuidade à supressão da democracia com as constituições de l967 e 1969.
Fruto da falta de prática democrática, a Consütuição de 1988 foi repleta de ambiguidades e exageradamente detalhista e corporativista. Seus conceitos são tão inseguros que seus redatores incluíram um dispositivo de transitoriedade prevendo sua "revisão constitucional", a qual deveria ter iniciado a 6 de outubro último.
A triste retrospectiva dos golpes constitucionais brasileiros praticados até hoje, acima apresentados, evoca as palavras de Oliveira Vianna (1883-1951) por ocasião da alternativa revisional da Carta de 1891, em 1931: "Para o nosso povo, a melhor Constituição, a ideal, seria não a que cristalizasse no seu texto todas as sublimidades do liberalismo e da democracia, mas a que reduza ao mínimo a influência nociva dos maus governos, dos maus chefes, dos maus políticos e, sobretudo, dos maus cidadãos". Ouso dar continuidade ao sábio pensamento do mestre: políticos e governantes são cidadãos eleitos por outros cidadãos; se estes são maus, é porque nós, cidadãos, que os elegemos, também, somos maus. Só quando entendermos isso, e nos tornarmos bons cidadãos, é que deixarão de existir golpes constitucionais, as soluções não-ortodoxas, e a verdadeira revolução por fim acontecerá. Basta de mesmice!
Bia Botana é analista política
Nenhum comentário:
Postar um comentário